segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Ensaio "Como Pensamos o Corpo-que-Dança" Projeto Escola Felipe Marx de Taquara/Rs- 2003



                         COMO PENSAMOS O CORPO

(..)“Quanto mais conhecemos as coisas como necessárias tanto maior é a potência da alma para pensar. Quem tem um corpo apto para um grande número de coisas possui uma alma cuja maior parte é eterna, eternidade não sendo imortalidade além-túmulo, mas identidade entre ser, existir e agir em ato” 0


                         Sabemos que esses corpos formam uma constelação de produtos cobiçados para exibir, “como se fossem um cartão de visitas de carne e osso”1. Sabemos que o corpo é objeto antropológico e para muitos estudiosos, como Kaufmann (1998) que o observa muito bem, o corpo não deve ser separado da imagem: “Diante de uma sociedade complexa, a pesquisa tende a se especializar, criando por vezes algumas fronteiras inadequadas. A que separa o corpo da imagem, organizando-os em dois mundos de reflexão distinta, é especialmente prejudicial na medida em que não ajuda a compreender o lugar cada vez mais importante do olhar na reunificação do saber.”2

Trabalho há mais de dezoito anos como bailarina e professora lecionando danças em escolas, para crianças e jovens menos favorecidos. Aos poucos, e bem aos poucos, este tema vai aparecendo com mais nitidez, principalmente quando se consegue ter um bom referencial teórico, Guattari, Deleuze, Foucault, Espinosa, Rolnik. Então, “isto” que pensamos estudar vai tomando corpo. Sabemos se tratar de um estudo complexo. Mas a curiosidade é maior que o “medo” de fracassar...

                      Em meio a empiricidade desses anos, sentimos a necessidade de aprofundar essa prática cientificamente. Já que surgiu essa luz e a dúvida aflorou, pois o olhar antropológico aguça logo após ocorrido com o "Menino Selvagem", antes e pós as oficinas de dança, percebíamos que havia um motivo para tais "oscilações" comportamentais? "...ele não usava talheres para se alimentar, parecia "Victor, o menino selvagem de Aveyron", depois que começou a participar das aulas de dança mudou radicalmente",  - disse sua professora de sala de aula para professora de dança. ( Menino que participava oficina SESI-Igrejinha no ano de 1999) ( O "menino Selvagem de Igrejinha", foi motivo para iniciar estudos científicos, e retomar curso trancado Unisinos de Ciências Sociais/mais tarde TCC /2003). Chegou a hora para aprofundar essa hipótese principal.,  Mergulharemos nas subjetividades dos corpos-que-dançam.3



                         Tem muitas maneiras de olhar, de pensar o corpo. Pensar, por exemplo, um corpo que vai além da estética, do conceito de beleza. Sabemos que todo corpo contém inúmeros outros corpos "virtuais" que o indivíduo pode “atualizar” por meio da manipulação de sua aparência: roupas, cosméticos, atividades físicas. A esse corpo chamado pelos antropólogos de “virtual”, aquele que é apresentado pela mídia; nada mais é que um corpo de mentira, porque é medido, calculado e artificialmente preparado antes de ser traduzido em imagens e de tornar-se o que chamam de corpolatria. Estes corpos disciplinados, catalogados pela mídia; e que são cordialmente convidados a considerar seu corpo defeituoso porque mesmo gozando de perfeita saúde, seu corpo não é "perfeito" e “deve ser corrigido” por numerosos rituais de autotransformação, sempre seguindo os conselhos e normas veiculadas pela mídia...
Mas essa antropologia, a do visual do corpo, não nos interessa neste trabalho, isso não significa que estamos o tratando de igual forma como a mídia o trata: uma coisa, um objeto. É justamente o contrário que pensamos estudar. Pensamos ultrapassar os limites da representação, que os transforma rapidamente em corpos estereótipados, porque disso as academias brasileiras parecem ser verdadeiras instituições pedagógicas do corpo, porque seguem, e é lógico, sobrevivem por este pressuposto; aliada aos interesses financeiros e compactuando com a mídia; uma complementa a outra; porque na verdade a preocupação principal dos corpos que procuram seus serviços está intimamente ligada a estética, mais do que esportiva.





Por esse motivo pensamos estudar os corpos-que-dançam não pela visão antropológica da“estética” e sim por seus devires subjetivos. Corpos que não estão apenas relacionados a sua estética-mídia, mas ligados ao movimento de romper com imagens prontas, como a de que o corpo deva ser uma moeda “erótico-social.” 4 Por outro lado, os corpos-que-dançam podem , se quiserem, permitir um "devir-sensação", para conseguir ativar um "novo"corpo, que iremos chamar de um "corpo-sensação", ou seja, um corpo capaz de não apenas  dançar, mas de afetar e ser afetado por outros corpos. Corpos “carentes” não mais de devires estéticos, mas sim de serem “tocados” por sentimentos... Que se sintam desejados por suas paixões, seus pensamentos e suas ações...



A dança como vetor para apurar sensibilidades? Apurar nos corpos -que-dançam e observar se agenciam  sentimentos,  paixões,  afetos e desafetos, de ter o poder de afetar, desfazendo o mito do "corpo ideal", o "corpo-bailarino", por exemplo. Cartografaremos se o ato de dançar está intimamente ligada com devires do sentir, do viver mais que corporais; e como estes corpos-que-dançam agenciam essas sensações com os "outros", os  corpos-que-assistem, por exemplo.

Sabemos que os corpos-que-dançam por uma economia do desejo, por sua vez, podem desembocar em fenômenos de catástrofes, de buracos negros como podem agenciar novas suavidades, singularizando-os. Queremos entender como esses corpos-que-dançam acionam esses desejos afetivos? Quais são as intensidades dessas mutações na “produção de subjetividade” 5 ?
Essas são algumas das hipóteses relevantes para os nossos estudos científicos. 





Sabemos que os corpos-que-dançam não funcionam apenas nas questões ideológicas, porque quando dançam já estão em um processo para sua singularização. Queremos entender como e porque ocorre esse processo de “singularização”6  ? Singularização essa que acontece quando já se está consciente deste processo subjetivo ou da sua importância para que ocorra o movimento, a ruptura, a liberdade de expressão na essência do ser“subjetivo-capitalístico”.7



Queremos entender quando este passa a produzir essas matérias de expressão criando para si e para o todo a tomada de consciência coletiva, "é quando o inconsciente cobra um ser humano essencialmente humano”8, através da afirmação de outras maneiras de ser.

A arte de dançar pode ser este "território-desejo"?

Um movimento para o dançar sem medo, sem vigiar, sem punir, sem culpa?
 “É claro que esses corpos-que-dançam são exigidos, a disciplina, a técnica, pois é o que lhe “habilita”como bailarino, caso contrário seria impossível haver o movimento dos corpos, a “ linha dura, sedentária, molar, consciente, dos territórios.” 9  se faz necessária.

Esta linha dura, sedentária, consciente, dos territórios se faz necessária porque é a linha do movimento de forças que os corpos-que-dançam percorrem, oscilam. É quando "territorializam".9 Ela funciona como um “estabilizador” que chama o corpo-disciplinado de volta... È impossível ficar o tempo todo "desterritorializado"9; enlouqueceríamos...

Aceitamos a existência do "corpo-disciplinado-que-dança", este corpo permite o acesso ao corpo-sensação? "linha  flexível, molecular, inconsciente, das atrações e repulsas, dos afetos e de suas simulações. em um corpo-vibráti" .10 

Será que estes corpos-que-dançam elevam a potência desse corpo-vibrátil?
Que tipo de sensações a dança provoca?
A dança é esse veículo que potencializa a produção de subjetividades não capitalísticas?

Como interpretam e aplicam em seu cotidiano essas sensações, essas paixões? As aprisionam?Ou as libertam?  Como esses corpos-que-dançam vivem esses movimentos, acionam tais forças?   Como esses corpos-que-dançam vivem as “coisas do mundo”?
Como interpretam os movimentos de protesto do inconsciente?
Como “mutilam” forças internas micro-fascistas?” 11



Mas o que é "subjetividade capitalística"?

 
Sabemos que a subjetividade “não se situa no campo individual, seu campo é de todos os processos de produção social e matérial”.12  A maior parte das interpretações modernas da subjetividade provém de uma base filosófica do domínio de uma suposta natureza humana. É quando a subjetividade aciona modos de individuação, ou seja, é quando a subjetividade diz "eu," ou "super-eu".

Para autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari, defensores do capitalismo enquanto produtor de subjetividades, acreditam que o sistema vigente é uma grande fábrica que produz uma subjetividade social. Para eles, produz inclusive aquilo que acontece conosco quando sonhamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos. A essa máquina propõem ser possível desenvolver modos de subjetivação singulares que seria uma forma de recusar todos esses modos ou pelo menos alguns, preestabelecidos de manipulação, de telecomando...

A principal característica  da produção de subjetividade capitalística seria a de bloquear processos de singularização e instalar processos de individuação: homens reduzidos à condição de suporte de valor onde a "culpabilidade" é uma de suas funções.

Para lidar com essa problemática não precisamos passar por uma psicanálise, mas sim por procedimentos “micropolíticos”, na instauração de dispositivos particulares que dissolvam esses elementos de “culpabilizaçao” dos valores “capitalísticos”.

Outra função da economia subjetiva capitalística, e talvez a mais importante é a “infantilização”, porque pensam por nós; a produção e a vida social, tudo tem que passar pelo Estado, e essa relação de dependência do Estado é um dos elementos essenciais,  segundo Guattari para consolidar o pensamento dominante com relação a subjetividade “capitalística”.

A ordem capitalística é então projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica. Está claro, a partir do pensamento de Guattari e Deleuze, que ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido, de sentimento, de afeto, etc.
Está presente nas montagens da percepção, da memorização, chega e atinge as categorias do Ego, Superego, Ideal do Ego. Então a subjetividade capitalística fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo.

 Mas porque aceitamos isso?